terça-feira, julho 29, 2014

Ensino Médio e técnico profissional: disputa de concepções e precariedade




por Gaudêncio Frigotto



"Como nos últimos cinquenta anos avançamos de forma pífia no aumento quantitativo e na qualidade dos jovens que cursam o ensino médio na idade adequada, e as políticas de formação profissional para a grande massa de jovens e adultos estão na lógica da improvisação, da precarização e do adestramento um dos contrastes que se reitera historicamente em nossa sociedade é a absurda concentração de renda e propriedade na mão de uma minoria e, como consequência, uma grande massa de pobres ou miseráveis".


Como a escola e os processos formativos não são apêndices da sociedade, mas parte constituída e constituinte dela, a desigualdade social se reflete na desigualdade educacional. O estigma colonizador e escravocrata da classe dominante brasileira produziu uma burguesia que não completou, em termos clássicos, a revolução burguesa e, como tal, não é nacionalista, mas associada ao grande capital.

Trata-se de uma classe dominante que desde o Império tem um discurso retórico que apresenta a educação como uma prioridade fundamental, uma espécie de “galinha dos ovos de ouro”para resolver todas as mazelas da sociedade. Almeida de Oliveira, em discurso no Parlamento em 18 de setembro de 1882, afirmava: “Na instrução pública está o segredo da multiplicação dos pães, e o ensino restitui cento por cento o que com ele se gasta”.1

Esse discurso hoje se materializa no slogan “todos pela educação”, mas na realidade legitima propostas educacionais de interesse privado dos grupos industriais, do agronegócio e dos serviços, especialmente bancos e grande imprensa privada. Isso se efetiva pela adoção por prefeituras e estados de institutos privados para gerir os sistemas de ensino no conteúdo e no método e nos valores mercantis.

O passo mais ousado desse processo foi lançado em 31 de janeiro de 2013 com o nome sugestivo de Conviva Educação, um virtual “gratuito”, desenvolvido por “investidores sociais” para apoiar a gestão das secretarias municipais de educação de todo o Brasil. Quem são esses protagonistas? Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Fundação SM, Fundação Itaú Social, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Victor Civita, Instituto Gerdau, Instituto Natura, Instituto Razão Social, Itaú BBA e o Movimento Todos pela Educação. A barriga de aluguel para a gestão e a divulgação é a União Nacional dos Dirigentes Municipais da Educação (Undime), com o apoio do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed).

Mas desde o Império são exatamente os representantes laicos e religiosos desses grupos privados que no Judiciário, no Parlamento e na burocracia do Estado, sustentados pelo monopólio da grande imprensa, que barraram ou desfiguraram as propostas que emanam do debate da sociedade e buscam afirmar o sentido republicano do direito à educação básica, pública, gratuita, universal e laica. Há mais de dois anos o Plano Educação, amplamente negociado e debatido na sociedade, está sendo protelado e desfigurado por essas forças privadas.

Dermeval Saviani, na videoconferência referida na nota 1, explicita de forma sucinta a negação histórica ao efetivo direito de educação básica pública de qualidade com a equação: filantropia + protelação + fragmentação + improvisação = precarização geral do ensino no país.

Para elucidarmos o resultado desse descaminho histórico, fixamo-nos no ensino médio e na formação técnica e profissional. Trata-se do duplo passaporte à cidadania efetiva, no plano político, social e econômico, mediante o acesso qualificado ao mundo da produção.

Cidadania política significa ter os instrumentos de leitura da realidade social que permitam ao jovem e ao adulto reconhecer seus direitos básicos, sociais e subjetivos e lhes confiram a capacidade de organização para poder fruí-los. No plano da formação profissional, a cidadania supõe a não separação desta com a educação básica. Trata-se de superar a dualidade estrutural que separa a formação geral da específica, a formação técnica da política, lógica dominante no Brasil, da Colônia aos dias atuais − uma concepção que naturaliza a desigualdade social postulando uma formação geral para os filhos da classe dominante e de adestramento técnico profissional para os filhos da classe trabalhadora.

A retórica reiterada da importância da educação “de todos pela educação” e do “convida educação” mostra-se cínica diante dos dados do Censo do Inep/MEC de 2011. O Brasil tem hoje 8.357.675 alunos matriculados no ensino médio. Apenas 1,2% no âmbito público federal, 85,9% no estadual, 1,1% no municipal e 11,8% no privado. Pode-se afirmar que no âmbito público apenas o 1,2% de alunos em escolas federais e algumas experiências estaduais, como a Escola Liberato no Rio Grande do Sul, têm padrões de qualidade internacional, com professores em tempo integral, carreira digna, tempo de pesquisa e orientação, laboratórios, biblioteca, espaço para esporte e arte etc., cujo custo econômico anual médio é de aproximadamente R$ 8 mil.

Dos 85,9% de jovens que estão nas escolas estaduais, mais de um terço o fazem à noite, com professores trabalhando em três turnos e em escolas diferentes e com salários vexatórios. O custo médio é de aproximadamente R$ 2 mil por ano, um quarto do custo federal. Uma mensalidade numa escola privada de elite corresponde ao que a sociedade brasileira está disposta a gastar com a maioria absoluta dos jovens que estão no ensino médio.
Mas o alarmante é o que revela a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad, 2011) sobre a negação do direito ao ensino médio aos jovens brasileiros. Dezoito milhões de pessoas entre 15 e 24 anos estão fora da escola e 1,8 milhão, em idade de estar no ensino médio, não o estão frequentando. Na faixa de entrar na universidade (18 a 24 anos), 16,5 milhões de jovens, ou seja, 69,1% não estudam. Pode-se concluir que o Brasil não tem de verdade ensino médio.

A metáfora do apagão educacional que aparece no vozerio de empresários e seus representantes intelectuais e políticos, para reclamar da falta de pessoal qualificado, esconde quem o produz: a mentalidade colonizadora e escravocrata da classe dominante.Com o quadro de ensino médio apresentado, a formação profissional em nível superior ou pós-médio só pode ser medíocre.

Os dados da Pnad mostram que apenas 9% dos jovens entre 18 e 24 anos entram no curso superior. É claro que vão faltar, especialmente em algumas áreas, profissionais qualificados. Como nos últimos cinquenta anos avançamos de forma pífia no aumento quantitativo e na qualidade dos jovens que cursam o ensino médio na idade adequada, a maioria só atinge o ensino fundamental, e as políticas de formação profissional para grande massa de jovens e adultos estão na lógica da improvisação, da precarização e do adestramento.

Isso fica evidenciado no seguinte dado histórico: em 1963, no curto governo João Goulart, em razão da carência de trabalhadores qualificados, criou-se o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra (Pipmo), que foi transitório e de curta duração. Veio o golpe civil-militar e esse programa durou dezenove anos.

O que é espantoso é que, cinquenta anos depois, a grande política do Estado brasileiro na formação profissional dos jovens e adultos reedita o Pipmo, com as mesmas características, mas com um volume muito maior de recursos, por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e do Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo).

Essas políticas, sem a base do ensino médio, constituem um castelo de areia. A meta até 2014 anunciada pelo Ministério da Educação é de 8 milhões de vagas, a maioria no Sistema S, especialmente pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Com o aporte de dinheiro público do BNDES de R$ 1,5 bilhão, pavimenta-se esse castelo, mas continuaremos negando a efetiva cidadania política, econômica, social e cultural à geração presente e futura de nossa juventude. Na expressão de Florestan Fernandes, “continuaremos a ser um Brasil gigante com pés de barro”Vale dizer, um gigante econômico com uma democracia efetiva frágil e formal e uma sociedade absurdamente desigual.

A mudança não virá da classe dominante e seus representantes no âmbito político, jurídico e religioso. Isso somente poderá mudar pela organização dos movimentos sociais, sindicatos e intelectuais; forças políticas e culturais que efetivamente lutem pelos direitos dos trabalhadores do setor público e privado e forcem as mudanças estruturais que mantêm uma sociedade que, como analisa Francisco de Oliveira, produz a “miséria e se alimenta dela”. E essa mudança só se dará quando os autodenominados “investidores sociais” anteriormente citados pagarem impostos sem a troca da tutela do Estado por benefícios fiscais e houver imposto de renda progressivo. Então poderemos ter fundos públicos para uma escola básica que inclua o ensino médio público, laico, gratuito e universal, no padrão do 1,2% da rede federal atual. Certamente será uma poderosa mediação para a cidadania política, econômica e cultural.


Gaudêncio Frigotto

Doutor em Educação – História e Sociedade (PUC-SP), professor titular de Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.



Ilustração: Orlando



1. Ver Dermeval Saviani, As reformas educacionais no Brasil, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 13 out. 2012 (videoconferencia)

quarta-feira, julho 23, 2014

Análise sobre desigualdade social brasileira no contexto mundial contemporâneo.


A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos  IHU, pelos colegas do Centro Jesuíta de Cidadania e Ação Social/Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CJCIAS/CEPAT e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN.
Sumário
1. Das limitações às evidências de Thomas Piketty sobre a desigualdade mundial
2. O debate sobre a desigualdade social no Brasil
2.1 O otimismo dos discursos sobre a redução da desigualdade no país
2.2 Brasil, um país menos desigual ou mais polarizado?
3. Há alternativas para a desigualdade mundial?
4. Conjuntura da Semana em frases

Eis a análise.
O debate sobre a desigualdade social no Brasil não pode ser visto desassociado do contexto das desigualdades mundiais, caso contrário corre-se o risco de cair nas armadilhas das análises rasteiras, que não dão conta ou simplesmente não querem entender o problema da desigualdade de forma mais ampla, no âmbito da globalização do pensamento único neoliberal, que tem moldado as formas de organização política, econômica e social no mundo. Nesse sentido, o boom do livro O Capital no século XXI, do economista francês Thomas Piketty, salvo as críticas, tem sido um excelente instrumento para aquecer um debate tão importante como este.
1. Das limitações às evidências de Thomas Piketty sobre a desigualdade mundial
Em uma das análises da conjuntura realizada em maio, ‘O Capital no século XXI’: O desmonte das teses liberais e da economia neoclássica, destacou-se a centralidade do debate sobre o aumento da desigualdade econômica no mundo, a partir da obra O Capital no século XXI, do economista francês Thomas Piketty.
Em consonância com a percepção coletiva de muitos movimentos sociais espalhados pelo mundo, as contribuições de Piketty só vieram reforçar a evidência de que a distância entre ricos e pobres chegou a um nível inaceitável.
É bom lembrar que o próprio Movimento Occupy, em 2011, já havia apontado que o “capitalismo não está mais funcionando”. Não sendo exagero dizer que “a questão das desigualdades está no centro dos debates políticos e econômicos na Europa, nos Estados Unidos e até nas economias emergentes”, daí o fascinante sucesso da obra deThomas Piketty.
Após a febre inicial em torno da obra do economista francês, que angariou elogios de economistas progressistas de peso, como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos prêmios Nobel de Economia, além do reconhecimento de economistas conservadores, que a consideraram inovadora, vieram as críticas.
Entre as análiese, destaca-se, por exemplo, a do geógrafo marxista David Harvey, que considera as reflexões dePiketty oportunas e brilhantes, mas sem deixar de ser contundente em sua crítica: “não conte com ele para compreender a dinâmica central do sistema”. Para Harvey, Piketty conta com uma definição equivocada de capital, pois “capital é um processo, não uma coisa. É um processo de circulação no qual o dinheiro é usado para fazer mais dinheiro, frequentemente – mas não exclusivamente – por meio da exploração da força de trabalho”. No entanto, “Piketty define capital como o estoque de todos os ativos em mãos de particulares, empresas e governos que podem ser negociados no mercado – não importa se estão sendo usados ou não”. Ora, “dinheiro, terra, imóveis, fábricas e equipamentos que não estão sendo usados produtivamente não são capital. Se é alta a taxa de retorno sobre o capital que está sendo usado, é porque uma parte do capital foi retirado de circulação”. Nesse raciocínio, uma das fragilidades da argumentação de Piketty está em não relacionar o capital com a produção ou o processo de valorização no sistema capitalista.
Para o economista francês François Chesnais, grande crítico do neoliberalismo, a proposta de Piketty em introduzir um imposto mundial sobre a riqueza é totalmente inviável. “A lista de problemas do capitalismo atual é muito mais abrangente e inclui queda na taxa de lucro global, crescimento da concentração industrial e avanço no grau de monopolização”.
Afora as limitações analíticas expostas, bem como outras que podem ser cabíveis, o fato é que Thomas Piketty faz lembrar que a desigualdade social não é um acidente, mas uma característica inerente ao capitalismo. É o sistema funcionando normalmente. Em relação a isso, parece não haver discordâncias entre os que debatem com ele. E para isso os números ajudam muito. Segundo o conservador The Economist, hoje 1% da população tem 43% dos ativos do mundo. Os 10% mais ricos detém 83%. Analisando a evolução de 30 países, durante 300 anos, de 1700 até 2012, percebe-se que a produção anual cresceu em média 1,6%. Ao contrário, o rendimento do capital foi de 4 a 5%”.
A obra de Piketty, ao evidenciar um grande aceleramento nos níveis de desigualdade do mundo, desafia a narrativa de centro-esquerda, particularmente da social-democracia que acreditou que o liberalismo poderia coexistir com a distribuição de renda. Pensando no Brasil, coloca em alerta os prognósticos ou a sensação de que se vive um momento de maior justiça social, com distribuição de renda. Como avaliar o debate sobre a desigualdade em um país fascinado com o aumento na capacidade de consumo das camadas populares, mas com tamanha concentração de renda?
2. O debate sobre a desigualdade social no Brasil
Na arena do debate sobre a desigualdade no Brasil, existem diferentes análises, principalmente em relação às políticas de enfrentamento mais recentes, aplicadas nos últimos 12 anos. Para alguns analistas, em especial aqueles ligados ao governo, há uma defesa das mesmas como referência internacional para a diminuição da desigualdade e para mudança no quadro social e econômico nacional, enquanto, por outro lado, existem aqueles que criticam os resultados desse suposto enfrentamento.
2.1 O otimismo dos discursos sobre a redução da desigualdade no país
Dentro da perspectiva otimista frente às políticas voltadas à redução da desigualdade no Brasil, os números trazidos se voltam, principalmente, para os avanços na escolarização da população, o crescimento da renda do conjunto da população, a estabilidade do crescimento inclusivo brasileiro e as conquistas dos programas sociais, em especial oBolsa Família.
Para Ricardo Paes de Barros, um dos idealizadores do programa Bolsa Família e atual secretário de Ações Estratégicas do Governo Federal, a queda da desigualdade perdeu fôlego recentemente, todavia sua aposta é de que a tendência ainda é de redução de concentração de renda, principalmente, por conta do atual aumento da escolaridade da população.
“A gente fala muito em Bolsa Família, mas na verdade a principal razão para a queda na desigualdade nos últimos dez anos é que nós ficamos menos desiguais em termos de capital humano. Ou seja, lá em 2002, 2003, a desigualdade de educação no Brasil começa a cair e o retorno da educação (o diferencial entre os salários dos mais e menos qualificados) despenca. (...) Então, o que acontece - o capital humano no Brasil passa a ficar melhor distribuído e, mais do que isso, o preço desse capital humano começa a despencar. E quase metade da queda de desigualdade do Brasil vem disso”, defende.
Diferentemente da análise feita por Piketty, Paes de Barros não acredita que no Brasil seja o momento adequado para aumentar a carga tributária dos mais ricos, como caminho para reduzir a desigualdade “Os países ricos veem uma desigualdade crescente, a gente vê uma desigualdade declinante. Eles estão preocupados com a distribuição funcional da renda entre capital e trabalho, e a gente está ainda preocupado com questões mais básicas como a desigualdade de renda entre os trabalhadores”.
Dessa maneira, pontua que é sabido que na medida em que o rico paga proporcionalmente menos imposto que o pobre, isso aumenta a desigualdade. Entretanto, o problema brasileiro não estaria na questão do nível da carga tributária, mas de ajustes da mesma: “Do jeito que está (o sistema tributário) é irracional. Não atende ao interesse de ninguém - nem de trabalhadores, nem de empresários, nem do governo”, completa.
Também muito otimista, Marcelo Neri, ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE/PR) e professor daEPGE/FGV, aponta que a redução da desigualdade se deu pelo crescimento de renda do conjunto de pessoas e pela estabilidade do crescimento inclusivo brasileiro.
Segundo os dados que apresenta, a desigualdade aumentou em dois terços dos países, enquanto que, nos dois últimos censos brasileiros, a desigualdade caiu em 80% dos municípios. “Depois de 10 anos de queda ininterrupta, a desigualdade, segundo o Gini, se manteve praticamente estabilizada entre as Pnads 2011 e 2012, passando de 0,527 para 0,526. Esta estabilidade é consistente com os dados da PME nos mesmos períodos. A desigualdade volta a cair fortemente a partir de abril de 2013. A queda de quase 10 pontos de Gini nos últimos 12 anos, sob qualquer comparação, é espetacular”, afirma.
Nesse período de 12 anos, ao comparar-se o crescimento anual de renda individual (3,06%), observa-se uma queda da desigualdade horizontal, pois cresce a renda de grupos tradicionalmente excluídos como os negros (4,4,%, analfabetos (5,8%) e os da periferia (4,4,%).
Outros dados que reiteram o combate à desigualdade no país são trazidos por uma publicação da Agência PT de Notícias, em uma reportagem publicada por Victoria Almeida, que aponta, entre outros índices, que o programaBolsa Família, além de contribuir para a diminuição da desigualdade, acarreta consequências positivas em outros setores estratégicos, como a saúde e a educação.
Contrapondo as críticas feitas ao montante de recursos destinados a pessoas atendidas pelo Bolsa Família e ilustrando a concentração de renda no país, a publicação contrapõe os valores do programa àquele detido pelas 15 famílias mais ricas do país. Estas detêm um patrimônio equivalente a R$ 270 bilhões, o que representa quase o dobro do recurso destinado a 50 milhões de pessoas atendidas pelo programa, que, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), nos últimos 11 anos, contou com um investimento de 137,3 bilhões.
Segundo o estudo “A Década Inclusiva”, publicado em 2012 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o programa Bolsa Família é o terceiro fator que mais influenciou na redução das desigualdades sociais no país, ficando atrás apenas da renda adquirida por meio do trabalho e da Previdência Social.
 “De acordo com o MDS, o auxílio do programa Bolsa Família às populações de baixa renda possibilitou a redução de 19,4% do índice de mortalidade infantil de crianças de até cinco anos. Ainda no âmbito de saúde, houve redução de 46,3% de mortes infantis por diarreia e 58,2% por desnutrição”, conforme aponta a publicação. Além disso, “no último bimestre de 2013, por exemplo, a média de aprovação de estudantes inclusos no programa foi de 96%.”, acrescenta.
Por fim, os dados recentes tem mostrado que, ao contrário do que se poderia acreditar, os beneficiários não se encontram estagnados socialmente, pois, segundo o Planalto, 75,4% dos assistidos pelo programa estão empregados. Além disso, eles representam 10% dos 3,8 milhões de Microempreendedores Individuais (MEI), espalhados pelo Brasil.
2.2 Brasil, um país menos desigual ou mais polarizado?
Apesar desse entusiasmo frente à queda da desigualdade no país, há diversas críticas que destacam, principalmente, a ausência de dados concretos e confiáveis para sua constatação, o fator da permanência da grande concentração de renda nas mãos de poucos no país, a falta de medidas na área fiscal, entre outros, além da constatação de que, na verdade, caminhamos para uma sociedade cada vez mais polarizada.
Clovis Rossi, jornalista, argumenta que os dados apontados por Sergei Soares e Marcelo Neri, ambos com atuação dentro de instâncias do governo federal, não são factíveis pelo fato de que são obtidos através de uma falsa declaração dos mais ricos. “O único estudo que mostra a queda da desigualdade (a partir de 1995, portanto, no governo Fernando Henrique Cardoso) é a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios), do IBGE. Os pesquisadores perguntam a renda da família. Quem vive só de trabalho ou de outro rendimento fixo diz o que ganha. Quem, além do salário ou de rendimento fixo, recebe proventos advindos de aplicações financeiras omite essa parte da renda. Ou por mero esquecimento, portanto de boa-fé, ou por medo (do fisco, de sequestro, do que seja)”, afirma.
Desse modo, ainda é temerária, e não científica, qualquer afirmação sobre a desigualdade, seja em relação à sua diminuição, aumento ou estabilidade. Todavia, há sim um índice que pode apontar para o fato de que ela teria aumentado: “para os 40 milhões de beneficiários do Bolsa Família, o governo destina não mais do que 0,5% do PIB a cada ano. (...) Já os poucos milhões que recebem o ‘Bolsa Juros’ levam no mínimo, quatro vezes mais, como em 2009, o ano em que os juros representaram 2% do PIB”, acrescenta.
Denise Neumann, em artigo publicado pelo jornal Valor, também aponta para a questão da taxa de juros e a ausência de dados confiáveis. Ela enfatiza que mesmo com a queda da desigualdade de renda no Brasil, no século XXI, não houve alteração na parcela que o 1% mais rico da população detém. “Essa diferença entre crescimento da renda e consequente queda da desigualdade está relacionada com o aumento do salário, os programas de transferência de renda, queda da inflação e também com a redução da taxa de juros”, mas, para uma análise mais refinada faltam dados sobre a posse de bens (riqueza), “por isso as análises sobre concentração e desigualdade no país são medidas pela renda e por dados censitários, em que o erro superestimado ou subestimado são um complicador para obtenção de dados confiáveis”.
Neumann argumenta que, com a mudança política de queda mais acentuada da taxa de juros, “o recrudescimento da inflação começou a agir na contramão da redução da desigualdade, pois pune justamente a população de menor renda. Isso porque essa população não tem excedente de recurso para poupar e os juros encarecem o consumo feito a crédito e a inflação reduz o poder de compra”.
Na análise de Mônica Baumgarten de Bolle, da Galanto Consultoria, apresentada por Neumann, a renda do trabalho cresceu no país muito em razão dos aumentos dos salários mínimos, todavia acrescenta que "essa situação, entretanto, não é sustentável (...) quando os salários crescem acima da produtividade da economia, a redução temporária da desigualdade começa a ser corroída pela alta inflacionária”. Assim, de acordo com a economista, as políticas públicas que causam a espiral “salário-preços” podem "interromper o processo auspicioso de ganhos de renda e inclusão social que o país viveu".
Paralelamente a esse contexto, soma-se o fator de que como a redução de juros tentada pelo governo não foi acompanhada por outras medidas (em especial na área fiscal), ela impulsionou a inflação, o que levou o governo a reverter o curso da política monetária. Assim é preciso rever a equação que permitiu, em outro momento, a queda da desigualdade.
O fator da taxa de juros, aliada ao tamanho da dívida pública, também é apresentado por Tânia Bacelar de Araujo. A economista apresenta que um índice incide proporcionalmente no outro de maneira que, as consequências são positivas para aqueles quem tem excedente financeiro e péssimo para a maioria da população. Situação da qual o Brasil ainda não se viu livre e que corrobora para o fato de que, mesmo com as melhoras observadas nos últimos anos (com a queda de sete posições no ranking dos países mais desiguais), o país ainda se encontre hoje entre os dez mais desiguais do planeta.
Por fim, a análise do economista e político brasileiro Márcio Pochmann que, ao avaliar as políticas públicas que favorecem a ascensão econômica de uma parcela da população, sem a garantia de incorporação dessas pessoas à classe média, aponta para a tendência a uma polarização da sociedade.
O economista avalia que a transição de uma classe trabalhadora para uma classe média assalariada se deve aos fatores do crescimento do setor de serviços com base em baixos salários e queda do setor industrial na participação do PIB. Segundo ele, o que se tem observado no país, desde a primeira década deste século, é uma “difusão de empregos não vinculados à indústria, mas aos serviços – pessoais, sociais, de distribuição –, cujo emprego é de menor qualidade do que aquele vislumbrado na indústria. Tanto é que dos 22 milhões de empregos que o Brasil gerou, 95% são relacionados à faixa de até dois salários mínimos mensais”.
Há, então, um mito em torno da ideia que a classe média está se expandindo. Na realidade, há uma tendência para a polarização entre ricos e uma “classe trabalhadora mais alargada, submetida a empregos precários, com baixos salários, maior informalidade, maior flexibilidade nas contratações”.
Segundo ele, essa polarização se deve ao fato de que o emprego de classe média, que atualmente tem se descolado dos países europeus e das Américas para a Ásia, tem se comprimido, de maneira que temos avançado para o fortalecimento dos muito ricos, que vêm crescendo e indicando o aumento da desigualdade.
Pochmann aponta que não é possível uma transição da classe trabalhadora para a classe média sem uma mudança na estrutura produtiva, e isso depende de ações mais abrangentes do que as ocorridas até o momento (ligadas ao novo sindicalismo dos anos 1970, com crescimento dos salários de acordo com a produtividade mais a inflação, melhora nas políticas de renda e assim uma ampliação ao acesso ao consumo, melhora de renda e empreso), mas que não significaram mudança de valores e nem a alteração dos serviços.
O economista elogia a mobilidade social conquistada no país e a implementação de políticas públicas focadas em grupos que pareciam intangíveis até então. Esse segmento passou a ter acesso ao emprego, programas de capacitação, fato que indica uma inversão nas prioridades do Estado brasileiro. Contudo, não se pode esquecer que essa ascensão social também tem suas contradições, derivadas da falência das grandes cidades brasileiras, da ausência de investimentos público para a mobilidade social a partir das décadas de 1980 e 90.
Assim, apesar do conjunto de programas de políticas públicas aplicadas nos últimos anos, que incluíram mais pessoas nos programas sociais, há uma série de contradições que precisam ser revistas. Ele menciona o Programa Minha Casa, Minha Vida, que possibilita a construção da casa própria, mas que todavia são feitas em áreas que não vêm acompanhadas de serviços públicos, transporte, áreas de lazer, postos de saúde e escolas.
Apesar das críticas, o economista tem uma visão positiva em relação à diminuição da desigualdade: “Há um ambiente internacional desfavorável, mas o Brasil dá passos firmes no sentido de evitar o aumento da pobreza e da desigualdade como estamos vendo nos países ricos”. Contudo, acrescenta que “a desigualdade da propriedade é muito maior do que essa desigualdade que medimos através do fluxo de renda do trabalho ou de benefícios de políticas públicas que é capturado pelo IBGE. Então, se considerarmos outras fontes de renda que não a do trabalho, é possível perceber melhor as desigualdades”.
Como se pode perceber, o Brasil não está fora das tempestades do sistema econômico mundial, muito menos está livre da cartilha neoliberal por desenvolver programas sociais de transferência de renda. Pelo contrário, eles só reforçam o modus operandi da ação estatal em subserviência aos interesses do capital financeiro, gerando uma importante demanda de novos consumidores.
3. Há alternativas para a desigualdade mundial?
Diante das evidências de que o mundo se torna cada vez mais desigual, as análises se dividem entre os que não veem mais saídas a partir do marco do sistema capitalista e aqueles que ainda ousam pensar saídas e propor alternativas. Um dos grandes impasses atuais é a forte financeirização do mundo, que assumiu formas estrambólicas, com intenso impacto no modo como a economia mundial, atualmente, organiza-se.  
Para o economista brasileiro Luiz Gonzaga Belluzzo, hoje há um acumpliciamento global das instituições financeiras com a política de interesses. Nesse sentido, elas “necessitam do apoio de condições institucionais e legais construídas sob o domínio doutrinário e ideológico do establishment, para não falar escancarada cumplicidade financeira dos parlamentos e dos tribunais. Sem esses apoios cruciais não podem adestrar seus músculos na disputa pela partilha da riqueza em todos os rincões do planeta”.
A análise de Belluzzo ultrapassa os limites circunscritos à economia ao buscar em Michel Foucault a compreensão mais ampla dos rastros neoliberais na vida em sociedade. Para o pensador francês, “o neoliberalismo é uma ‘prática de governo’ na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, ‘introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade’”. Nesse sentido, “trata-se de fazer do mercado, da concorrência e, por consequência da empresa, o que poderíamos chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.
E pode haver saídas para essa absolutização dos dogmas neoliberais, enraizados nas formas de convívio e organização da vida em sociedade, no momento atual? Para intelectuais como o antropólogo David Graeber, parece que não. Em sua análise, “o período em que o capitalismo pareceu capaz de garantir uma prosperidade ampla foi também, precisamente, o período no qual os capitalistas se viram como sendo não os únicos atores em jogo: foi quando eles enfrentaram um rival mundial no bloco soviético, os movimentos revolucionários anticapitalistas do Uruguai à China e, pelo menos, a possibilidade de rebeliões por parte dos trabalhadores locais".
Para Graeber, “o que aconteceu na Europa ocidental e na América do Norte entre aproximadamente 1917 e 1975 – quando o capitalismo criou, de fato, um crescimento alto e uma desigualdade menor – foi algo como uma anomalia histórica”. Mas, e agora? “Desde a década de 1970, na medida em que as ameaças políticas significativas diminuíram, as coisas voltaram ao seu estado normal: ou seja, a desigualdades selvagens, com os míseros 1% presidindo uma ordem social marcada por uma crescente estagnação social, econômica e mesmo tecnológica”. Sendo assim, o antropólogo é terminante: “Se quisermos uma alternativa à estagnação, ao empobrecimento e à devastação ecológica, vamos precisar encontrar uma forma de desligar a máquina e começar de novo”.
Já para o economista francês e padre jesuíta, Gaël Giraud, “o aumento das desigualdades provoca a desumanização: a miséria afunda os mais pobres num inferno e a ultrarriqueza isola os mais ricos num gueto separado do resto da humanidade, em pânico de perderem o seu conforto, incapazes de participar de um projeto histórico e político que ultrapasse as dimensões que são próximas da sua vida de luxo. Praticar a justiça é uma libertação não somente das vítimas como também dos carrascos”.
Gaël Giraud não faz parte do time dos pessimistas, em sua opinião, “as soluções existem. O que falta é a vontade política”. “Essa falta se deve ao fato de que grande parte dos políticos nos governos, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, provém de classes favorecidas, que não têm interesse na reforma financeira de modo a reduzir as desigualdades e assegurar a prosperidade de todos”.
O que, então, propõe Giraud? “Se queremos sair do servilismo, temos de sair do neoliberalismo”. É necessário romper com a lógica dos mercados financeiros e “é preciso colocar o Banco Central sob o controle de um poder político democrático”, pois atualmente obedece apenas aos interesses do setor bancário privado.
Além disso, é crucial passar a considerar “a importância vital da energia e das matérias naturais nas nossas economias”. Os recursos naturais não são infinitos e para que seja garantido um mínimo vital para todos, é fundamental “que o conjunto dos países ricos (onde se inclui o Brasil) ponha em prática, de modo voluntário, a transição energética: a passagem de uma economia essencialmente fundada sobre as energias fósseis (gás, carvão, petróleo) para outros tipos de energia (renováveis)”.
Sendo assim, o verdadeiro problema atual é o de abandonar o fascínio pelas finanças, desafio não compreendido pela social-democracia ocidental, e garantir as bases para que ocorra uma autêntica transição energética, pois “a transição ecológica é inseparável de uma transição social”. O êxito está em romper com o monopólio da riqueza nas mãos de uma minoria, que dela se serve “para destruir o ambiente e esgotar os nossos recursos”.

segunda-feira, julho 21, 2014

A Escola dos meus Sonhos

Por Frei Betto


Na escola dos meus sonhos, os alunos aprendem a cozinhar, costurar, consertar eletrodomésticos, a fazer pequenos reparos de eletricidade e de instalações hidráulicas, a conhecer mecânica de automóvel e de geladeira e algo de construção civil. Trabalham em horta, marcenaria e oficinas de escultura, desenho, pintura e música. Cantam no coro e tocam na orquestra. Uma semana ao ano integram-se, na cidade, ao trabalho de lixeiros, enfermeiras, carteiros, guardas de trânsito, policiais, repórteres, feirantes e cozinheiros profissionais. Assim aprendem como a cidade se articula por baixo, mergulhando em suas conexões que, à superfície, nos asseguram limpeza urbana, socorro de saúde, segurança, informação e alimentação.
Não há temas tabus. Todas as situações-limite da vida são tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade. Ali os alunos aprendem o texto dentro do contexto: a Matemática busca exemplos na corrupção dos precatórios e nos leilões das privatizações; o Português, na fala dos apresentadores de TV e nos textos de jornais; a Geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a Física, nas corridas de Fórmula-1 e nas pesquisas do supertelescópio Huble; a Química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a História, na violência de policiais contra cidadãos, para mostrar os
antecedentes na relação colonizadores - índios, senhores - escravos, Exército - Canudos, etc.
Na escola dos meus sonhos, a interdisciplinaridade permite que os professores de Biologia e de Educação Física se complementem; a multidisciplinaridade faz com que a História do livro seja estudada a partir da análise de textos bíblicos; a transdisciplinaridade introduz aulas de meditação e dança e associa a história da arte à história das ideologias e das expressões litúrgicas. Se a escola for laica, o ensino religioso é plural: o rabino fala do judaísmo, o pai-de-santo, do candomblé; o padre, do catolicismo; o médium, do espiritismo; o pastor, do protestantismo; o guru, do budismo, etc. Se for católica, há periódicos retiros espirituais e adequação do currículo ao calendário litúrgico da Igreja. Na escola dos meus sonhos, os professores são obrigados a fazer periódicos treinamentos e cursos de capacitação e só são admitidos se, além da competência, comungam os princípios fundamentais da proposta pedagógica e didática. Porque é uma escola com ideologia, visão de mundo e perfil definido do que sejam democracia e cidadania. Essa escola não forma consumidores, mas cidadãos.
Ela não briga com a TV, mas leva-a para a sala de aula: são exibidos vídeos de anúncios e programas e, em seguida, analisados criticamente. A publicidade do iogurte é debatida; o produto adquirido; sua química, analisada e comparada com a fórmula declarada pelo fabricante; as incompatibilidades denunciadas, bem como os fatores porventura nocivos à saúde. O programa de auditório de domingo é destrinchado: a proposta de vida subjacente, a visão de felicidade, a relação animador-platéia, os tabus e preconceitos reforçados, etc. Em suma, não se fecham os olhos à realidade, muda-se a ótica de encará-la. Há uma integração entre escola, família e sociedade. A Política, com P maiúsculo, é disciplina obrigatória. As eleições para o grêmio ou diretório estudantil são levadas a sério e, um mês por ano, setores não vitais da instituição são administrados pelos próprios alunos. Os políticos e candidatos são convidados para debates e seus discursos analisados e comparados às suas práticas.
Não há provas baseadas no prodígio da memória nem na sorte da múltipla escolha. Como fazia meu velho mestre Geraldo França de Lima, professor de História (hoje romancista e membro da Academia Brasileira de Letras), no dia da prova sobre a Independência do Brasil, os alunos traziam para a classe a bibliografia pertinente e, dadas as questões, consultavam os textos, aprendendo a pesquisar. Não há coincidência entre o calendário gregoriano e o curricular. João pode cursar a 5ª série em seis meses ou em seis anos, dependendo de sua disponibilidade, aptidão e seus recursos. É mais importante educar do que instruir; formar pessoas que profissionais; ensinar a mudar o mundo que ascender à elite. Dentro de uma concepção holística, ali a ecologia vai do meio ambiente aos cuidados com nossa unidade corpo-espírito e o enfoque curricular estabelece conexões com o noticiário da mídia.
Na escola dos meus sonhos, os professores são bem pagos e não precisam pular de colégio em colégio para se poderem manter. Pois é a escola de uma sociedade em que educação não é privilégio, mas direito universal, e o acesso a ela, dever obrigatório.

quinta-feira, julho 17, 2014

"Cotas nas universidades brasileiras" entrevista para Caros Amigos - Gregório Grisa



Com o objetivo de formular uma reportagem sobre as cotas no Brasil a revista Caros Amigos me convidou para tratar do tema. Transcrevo toda entrevista abaixo, a reportagem está na última edição da revista já nas bancas. 

Entrevista feita por Laís Modelli.

Qual a importância em se oferecer cotas raciais nas universidades brasileiras?

Gregório Grisa: a adoção de políticas afirmativas desse tipo se deu por conta do diagnóstico de que a participação de pessoas negras no ensino superior era muito baixa em relação à proporção desse grupo na população. Identificada essa desigualdade no acesso a um direito que é a educação, se pensou uma política pública que tivesse capacidade de intervenção no curto e no médio prazo. Diria então, que a importância primeira é garantir acesso a um direito.

O processo de formação da sociedade brasileira e o tipo de racismo aqui desenvolvido são muito particulares. A divisão social do trabalho foi acompanhada de uma divisão racial do trabalho, os negros foram sistematicamente excluídos das esferas dos direitos sociais. Quando se somou a isso a eficácia do racismo institucional, encontrou-se no acesso ao ensino superior a expressão mais radical dessas desigualdades.

As cotas hoje representam um modo de aplicar o princípio da igualdade material, como lembrado pelos ministros no julgamento da constitucionalidade dessas políticas no STF. Percebeu-se que políticas de caráter universal não se mostravam eficazes na promoção da igualdade concreta e que somente a garantia na legislação do princípio da igualdade formal era insuficiente, daí pensar em políticas específicas.
Bom lembrar que a grande maioria de experiências de cotas nas universidades na década de 2000 foram iniciativas das instituições universitárias no exercício de sua autonomia e que pouquíssimas usavam exclusivamente critério racial na sua reserva de vagas.

De acordo com o IBGE, o percentual de negros entre 18 e 24 anos no ensino superior passou de 10,2% em 2001 para 35,8% em 2011, podemos dizer que isso já é resultado dessas políticas. A formação de nível superior é um dos grandes fatores de mobilidade social e reconhecimento, e o acesso a esse estágio de ensino foi historicamente negado a população negra no Brasil, as cotas pretendem mexer um pouco nesse cenário, dentro do seu limite de alcance, daí sua importância.

Elas são de fato eficientes para incluir negros, indígenas e alunos de baixa renda no ensino superior?

Gregório Grisa: o dado do IBGE que mencionei acima responde de alguma forma essa questão. O aumento do número de negros, indígenas e de alunos de classe popular na universidade é notório nos últimos 10 anos. Porém, no universo de formandos, esses grupos ainda são pouco representados, principalmente em cursos mais prestigiados e disputados.  Na carreira de medicina, apenas 2,66% dos concluintes em 2010 eram pardos ou pretos, em Comunicação Social eram 5,11%, por exemplo. Esses números tendem a crescer no próximo período em função da Lei 12711 que prevê as cotas nas IES (instituições de ensino superior) federais. Então sim, creio que as cotas são eficientes ao incluir esses grupos sociais, sem contar que essas medidas não qualificam apenas a vida de quem a usufrui diretamente, mas elas também oxigenam a universidade e representam um aperfeiçoamento da nossa democracia de baixa intensidade no que tange a igualdade material.

Penso que duas coisas devem ser destacadas sobre a questão da renda:

1 - o critério de renda, que a lei citada inseriu nas cotas é uma questão a ser mais bem pensada na minha avaliação, pouco se ouviu as universidades que já tinham experiência em políticas afirmativas quando o congresso concebeu a lei. A aplicabilidade do critério de renda tem sido razão de desgaste institucional para algumas universidades que precisam fazer mutirões para avaliar documentações comprobatórias, por vezes sem pessoas preparadas para isso. A meu ver, a exigência da escolaridade em escola pública ataca em alguma medida a questão socioeconômica, o critério de renda não pode ser pensado no abstrato sob pena de em algumas regiões do país restringir a possibilidade de participação de candidatos que poderiam se enquadrar nos critérios étnico-raciais e de escolaridade. Ou seja, não é realista pensar que serão os mais pobres entre os mais pobres que se beneficiarão das cotas, acessar o ensino superior demanda o acúmulo de certo capital cultural e social que é difícil enquadrar em valores exatos de renda. Sem precaução ao utilizar-se o critério de renda pode estar-se excluindo os candidatos mais preparados para usufruir deste direito e ainda encontrar problemas de baixa ocupação das vagas.

2- a segunda questão tem tudo a ver com a primeira, o percentual de estudantes negros que finalizam o ensino médio é muito aquém do índice de brancos. A segregação vem antes do ensino superior, com isso o púbico que consegue terminar o ensino médio talvez tenha um mínimo de recursos econômicos na família, o que não dirime o fato de ele sofrer com o racismo, de ter freqüentado um ensino de qualidade deficitária e tão pouco de ter dificuldades materiais diferenciadas.

Como garantir a permanência do aluno de cotas sociais na universidade?

Gregório Grisa: esse é o grande desafio das universidades brasileiras na próxima década. Sem dúvida que permanência passa por questões materiais como: bolsas, auxílios, transporte, alimentação, moradia; seria redundante dizer que programas especiais de apoio devem ser criados nas universidades, essas terão de usar da criatividade e vontade política para buscar alternativas. O incremento do orçamento do PNAES (Plano Nacional de Assistência Estudantil) é fundamental, bem como, elaboração de apoios que transcendam os critérios socioeconômicos que condicionam o recebimento de assistência estudantil.
Penso que para além das questões materiais há o desafio pedagógico.

A formação dos professores universitários ainda é um tabu em algumas instituições, principalmente nas áreas mais duras. A mudança do público que entra na universidade tem de ser acompanhada de uma mudança no modo como se pensa o ensino, a pesquisa e a extensão. Desenvolver a capacidade de reconhecer conhecimentos trazidos pelos alunos, seus códigos culturais e sociais é um tema de casa para a universidade. As pessoas só permanecem em ambientes que se sintam acolhidas, em que são valorizadas. Portanto, a prática de sala de aula, o repensar dos currículos, a adaptação de métodos avaliativos são fatores que serão determinantes para a permanência e futura diplomação desses alunos.

Vale dizer ainda que quanto mais as instituições se democratizarem internamente e incluírem os alunos nas instâncias deliberativas e políticas, maior será o potencial de permanência. Muitas universidades preservam lógicas de funcionamento burocráticos enrijecidos, estruturas representativas pouco democráticas, com isso os alunos não desenvolvem uma cultura de participação tão importante pra que eles se integrem e tenham subsídios para enfrentar possíveis dificuldades em sua trajetória acadêmica. 

Por que a sociedade ainda reluta em aceitar o sistema de cotas, principalmente as raciais, nas universidades brasileiras?

Gregório Grisa: não sei se podemos dizer que a sociedade como um todo reluta em aceitar as cotas. Poderíamos argumentar, em contraponto, que o fruto do amadurecimento desse debate na última década foi a constituição de certo consenso sobre a matéria nos três poderes da república. O executivo federal é entusiasta das cotas, o STF aprovou a constitucionalidade por unanimidade, o congresso formulou, votou e aprovou a Lei da cotas, essas instâncias são representativas da sociedade.  Da para adicionar a isso a própria comunidade acadêmica brasileira que em sua grande maioria debateu o tema nos últimos anos e optou por adotar tais ações afirmativas, então eu diria que as cotas têm ampla vantagem no debate nas instituições públicas.

Entretanto, compreendo de onde vem tua pergunta, da chamada “opinião pública”. É claro que se levarmos em conta as grandes corporações de mídia no país e seus “formadores de opinião” há significativas resistências às cotas. O diretor geral de jornalismo da Rede Globo inclusive tem livro contra as cotas. Penso que as razões para essa oposição tão forte se devem ao fato de que políticas afirmativas questionam um conjunto de “verdades” do pensamento liberal ou neoliberal que tem nos valores da meritocracia, do esforço individual seus pilares.

Além disso, esse grupo opositor tem uma interpretação acerca das relações étnico raciais brasileiras bastante particular, que entra em confronto com a literatura acadêmica mais séria, pois pra eles o racismo é um problema menor, mais ligado a subjetividade do que condicionador de papéis sociais.
Infelizmente esses grupos midiáticos têm um alcance muito grande à população e quando o cidadão comum se depara com interpretações mais simplistas e muitas vezes oportunistas, é conquistado. Quando se faz um debate mais rigoroso sobre esse tema muito pode ser sanado no que se refere a um olhar mais ingênuo sobre políticas afirmativas.

Além da medida de cotas e bonificação no vestibular, como o ensino superior pode ajudar a incluir esse público na universidade?

Gregório Grisa: acho que essas medidas são um avanço, mas a demanda reprimida no Brasil é muito grande. Esse ano mais de 9,5 milhões de pessoas inscreveram-se no ENEM, sendo que ensino superior público e privado juntos oferecem pouco mais de 2 milhões de vagas. A rede privada de ensino superior ainda tem 73% das matrículas, isso significa que as vagas em universidades públicas são ainda muito restritas, portanto, aumentar as vagas é um caminho constante e necessário.

Outro elemento a ser aprimorado é a relação da universidade com o ensino médio, há um funil muito grande nessa etapa no que tange a formação de jovens negros e de classes populares. O pacto federativo é um limitador de alguns avanços quando deixa a cargo dos governos estaduais, com sérias restrições de investimentos, as escolas de nível médio.

A União diante dos possíveis aumentos de recursos para educação dos próximos anos, com os royalties do petróleo e a aprovação do PNE, terá de encontrar alternativas para atacar os problemas estruturais do ensino médio. Sem essa intervenção, vejo muitas dificuldades para o Brasil dar um salto de qualidade no nível médio, lembrando que 88% das matrículas de nível médio no país são em escolas públicas.

Incluir as pessoas na universidade é um passo, mas a vida desses alunos durante sua formação requer um conjunto de outras variáveis que transcendem as competências de um sistema de ensino superior.

Em linhas gerais, quais as falhas e os acertos do sistema de cotas no ensino superior público brasileiro? E no caso da UFRGS, quais os acertos e erros desde 2008?

Gregório Grisa:  penso que a multiplicidade de modalidades de cotas adotadas na última década no Brasil dificulta o trabalho de apontar falhas e acertos transversais. O que pode ter dado certo em uma região do país e em uma universidade pode ter dado errado em outros casos. Para se ter idéia até 2012, antes da Lei das Cotas no sistema federal, 70 universidades públicas, das 96 que existiam, tinham algum tipo de ação afirmativa.
Os principais beneficiários dessas políticas são os alunos oriundos de escolas públicas (60 universidades), para população negra havia ação afirmativa em 40 instituições, dessas 37 mesclavam critério de escolaridade junto com o étnico racial. Creio que os limites de ordem técnica são hoje até maiores do que os políticos: a garantia da ocupação real das vagas é um desafio colocado. O SISU é um sistema um tanto descolado das estruturas das instituições e essa adequação e diálogo entre essas instâncias terá de se qualificar.

A experiência da UFRGS mostrou que mesmo com as cotas, a complexidade do sistema de seleção (via vestibular e pontos de corte) foi limitador da ocupação das vagas dos autodeclarados negros em cursos mais disputados, a ponto da universidade ter de modificar o processo de correção das redações para solucionar esse problema. Mesmo com essa mudança, 50% da reserva de vagas para negros foram ocupadas por esse grupo em 2012, nos anos anteriores esse percentual ficava em torno de 34%. A adequação da dinâmica de seleção para efetivar as cotas também foi necessária em outras universidades federais do sul do Brasil, essa é uma falha identificável.

Particularmente, como já comentei, acho que a inclusão do critério de renda feita com a Lei da Cotas vai criar problemas de logística nas universidades, a UFRGS já faz uma ginástica institucional para a averiguação de documentos contábeis. A declaração de renda no Brasil não é algo simples e exige quadro de pessoal preparado para evitar possíveis fraudes e enganos, hoje 10% dos candidatos que ingressam pelo critério de renda tem matrícula negada por não conseguirem comprová-la. Não sou a favor da retirada definitiva do critério de renda da política de cotas, mas penso que poderia haver flexibilização para que as universidades tivessem autonomia de adotar esse critério ou não, com isso experimentos mais paulatinos poderiam ser feito nesse sentido.

Como uma política específica, talvez se tenha colocado peso demais sobre as cotas, digo isso porque o formato definitivo da Lei 12711, ao tentar contemplar as várias modalidades que existiam, com apenas uma normativa buscou atacar no mínimo três problemas sociais distintos, quais sejam: combater a desigualdade étnico-racial no ensino superior, garantir o acesso para alunos de escolas públicas em desvantagem na lógica seletiva em vigor; e abrandar a pobreza reservando vagas para alunos de baixa renda. Não vejo as cotas como uma política de combate direto a pobreza, talvez indireto, mas seria ingênuo achar que esse é seu objetivo primeiro, para isso, deve entrar em cena um conjunto bem mais robusto e complexo de políticas públicas.  Exigir das cotas um potencial resolutivo de problemas sociais profundos que estão além da sua alçada é estratégia política para desmerecer a política.

Uma das questões que mais levantou polêmicas nas cotas foi a de como identificar os sujeitos foco da política. A autodeclaração do candidato é o formato mais usado e virou lei. Acho que experiências como da UNB e da UFPR que optavam por uma comissão para verificar se o candidato era socialmente reconhecido como negro não podem ser jogadas fora. Talvez se deva achar formatos diferentes de fazer isso, mas é importante garantir que pessoas com fenótipo negro ingressem nas vagas reservadas para elas e não correr o risco de casos de  falsidade ideológica e fraudes que possam desvirtuar as ações afirmativas.

Sobre os acertos vale mencionar os programas de apoio a graduação, o PAG criado na UFRGS, por exemplo, busca garantir a todos os alunos da universidade aulas e dinâmicas formativas em áreas fundamentais do conhecimento para além das disciplinas do seu curso. A ampliação da assistência estudantil e o aumento de atividades multiculturais também são fatos que se devem às cotas. Essas políticas estão em constante aperfeiçoamento, há muito que se avançar.

Houve resistência de algum setor na universidade para se aprovar a adoção do sistema de cotas na UFRGS?

Gregório Grisa: quando da primeira votação das cotas no conselho universitário em 2007 houve resistências sim. Há trabalhos de pós-graduação como a tese "Que América Latina se sincere" : uma análise antropológica das políticas e poéticas do atavismo negro em face às ações afirmativas e às reparações no Cone Sul de Laura López na antropologia da UFRGS que narram muito bem a polarização de opiniões que caracterizaram o momento.

Alunos de graduação e pós-graduação de setores mais conservadores foram protagonistas ao se posicionarem contra as cotas no Consun, bem como professores ligados as áreas médicas, das exatas e inclusive um da antropologia. A mídia cumpriu um papel de disseminar a opinião contrária as cotas, com textos de opinião e editoriais que olhando hoje em dia beiravam o terrorismo.  Nas vésperas da votação no Consun se chegou ao extremo de termos muros perto da universidade pichados com passagens racistas, triste lembrança daquele momento da universidade.

As negociações foram intensas para adotar as cotas, muitas concessões foram feitas para se chegar a certo consenso, a pressão do movimento social negro e parte do movimento estudantil foi fundamental, bem como, o fato da UFRGS estar em processo de adesão ao REUNI que previa investimentos para instituições que adotassem ações afirmativas. 

Na renovação das cotas em 2012 o cenário que tínhamos era outro. O mérito da política em si já não era central no debate, o que passou a ser pauta era que modalidade iria se adotar, que critérios iriam se usar e como poderíamos qualificar a política já consolidada a nível nacional.

Um papel importante que os meio de comunicação deveriam cumprir, a meu ver, é o de oferecer subsídios para que as pessoas sem familiaridade com o tema das cotas transcendam a dicotomia contra/a favor que mais imobiliza do que auxilia. Hoje há uma política pública do Estado que visa atacar problemas concretos e contemporâneos, as cotas são um dos vários dispositivos que existem no combate ao racismo e na promoção de igualdade de acesso ao ensino superior, nosso desafio é qualificar essa política e somar a ela outras intervenções necessárias que sejam frutos de diagnósticos precisos e coerentes.

Como você rebate o argumento de alguns setores da sociedade de que, ao incluir um aluno por cotas, o rendimento da universidade cairá?

Gregório Grisa: penso que esse argumento só merece ser rebatido ainda por razões didáticas, isto é, politicamente é importante destituir pensamentos que não se fundam em nenhuma realidade pesquisada. UFOP, UFBA, UNB, UNEB, UERJ e UNIFESP, são algumas instituições que foram pesquisadas, se verificou, em geral, que o aproveitamento dos cotistas é satisfatório e as diferenças desses para os alunos que ingressam pelo processo universal não são significantes estatisticamente.

Aqui na UFRGS os primeiros levantamentos que temos feito caminham nessa direção, o período ainda é curto para desenvolver séries históricas longas, mais de 70% dos cotistas estão ainda em seus cursos, mas ao olharmos evasão, retenção, os dados de cotistas e não cotistas são muito próximos. Em cursos cuja dificuldade de acompanhar é maior, como algumas engenharias e exatas, todos os alunos sofrem. Já em alguns cursos difíceis de ingressar, mas que raramente há evasão e retenção, os cotistas têm melhor desempenho. O tempo que os alunos levam para se formar na UFRGS é tradicionalmente longo em relação a outras universidades, e isso atinge a todos os grupos de alunos.

Diante disso podemos dizer que o que sustenta o argumento de que a universidade perderá qualidade com o ingresso de cotistas é o preconceito. Há uma concepção de mundo por trás desse argumento, de que o ensino superior deve ter o mérito como único critério de seleção. Esse pensamento não leva em conta que a educação superior pública é um direito e que valores meritocráticos quando utilizados exclusivamente em sociedades desiguais se prestam mais a reproduzir hierarquias sociais e étnico-raciais injustamente constituídas do que a promover a justiça. 

Por fim, não se trata de rebater o argumento, mas de oferecer evidências, quem pensa assim precisa estudar.