terça-feira, maio 05, 2015

Colunista, vá dormir!

Texto escrito em resposta as afirmações feitas pelo articulista da Veja no artigo "Professores, acordem!"

Alexandre Silva Virginio (1)

O  colunista  da  revista  Veja,  Gustavo  Ioschpe,  manifestou  sua  visão  de quem  são  os responsáveis pelas mazelas da educação nacional: os professores. Vale -se, para tanto, de um conjunto  de  ilações  que,  em realidade,  culpabiliza  a  vítima,  ainda  que  sua intenção  seja combater  o que ele  chama  de  ‘vitimização  dos  professores’.  Para  ele, a  luta  por melhores salários  dos  professores  é  ilegítima  pois  que  o  que  oferecem  à sociedade é  um  ensino responsável por nossos inexpressivos indicadores educacionais. Mesmo os 10% do PIB para a educação, segundo Gustavo, não resultará em qualquer melhoria. Para ele, segundo seu artigo, a  educação  de qualidade depende  das  competências,  habilidades  e  destrezas  do professor. 





Somente depois de comprovar seus predicados como educador poderiam os professores, aliás, muito ‘gananciosos’ destaca o colunista, reivindicar ‘um contracheque mais gordo’. Seus argumentos, em verdade,  encontram paralelo no governador do Paraná, Beto Richa, que culpou os professores pela violência policial. 

O que esta perspectiva revela,  ademais,  é uma total  ignorância  em relação aos  fatores  intervenientes  nos processos educacionais. Responsabilizar unicamente os professores pelo sucesso escolar da nação é desconhecer que a qualidade  da  educação,  além  de professores bem  formados,  motivados  e dignamente remunerados requer atentar para as condições  institucionais e para a  natureza dos contextos sociais  que  atende.  Demanda,  ainda  que  não unicamente,  escolas  com  espaços  adequados, equipadas,  equipes  de  apoio atuantes  e  um  projeto  eco-político-pedagógico  discutido  e apropriado pela comunidade escolar. Não obstante, parece que o economista esquece que não universalizamos o acesso à educação básica. Ainda temos, por exemplo, mais de 8 milhões de crianças de 0 à 3 anos sem acesso à educação infantil. 

O que dizer então da demanda referente ao ensino médio. De acordo com os dados mais recentes, são quase 2 milhões de jovens entre 15 e 17 anos que não estudam. Então colocar estes  jovens na escola não demanda recursos? 
Isto  sugere,  para  aqueles  com  um  mínimo  de  bom  senso,  que  as políticas  d e  educação requerem  recursos muito mais substantivos do que os atuais.

Além disso, as interpretações do referido autor revela total inobservância  do que as ciências sociais, especialmente a sociologia da educação, tem aportado à compreensão dos fenômenos educacionais.  Como  não reconhecer  os  efeitos da  pobreza,  do  desemprego,  das  doenças,  da falta  de  saneamento  básico, das  crises  da  família,  da  insolvência  de  recursos  financeiros  no cotidiano das famílias e que repercutem nas disposições e no conteúdo do capital cultural que a  criança  leva  para  a  escola?  Já  não  é  novidade  a violência  simbólica que  a  escola  pratica quando,  através  de  um  arbitrário cultural,  assume elementos  da  cultura  dominante  atrás  da imagem da cultura universal. Indo além, muito das dificuldades das relações entre professores e  alunos  decorrem das  lentas  mutações  da  modernidade. Dentre  elas,  destaque-se as exigências colocadas às escolas pela diversidade cultural, pelo utilitarismo do mercado, pela relativização dos valores ou pelo significado das novas tecnologias, sem esquecer é claro, das implicações pouco educacionais da grande  mídia.

Ao  associar  a  qualidade  da  educação  ao  desempenho  dos  professores  o articulista  deveria reconhecer  que  mais  de  80%  dos  mesmos  são formados em  universidades  privadas  e  cuja qualidade  do  que oferecem  deveria  ser objeto  de  um  olhar  mais  atento  da  sociedade. Aliás, estudos  da  Fundação Getúlio  Vargas  tem  destacado  o  caráter  insípido  e abstrato, portanto distante  das  realidades  escolares,  dos  currículos  de formação  dos professores.  

Não  bastasse isto,  a  questão  salarial  não  pode ser negligenciada.  De  um lado,  porque  não  conseguimos atrair  os  jovens para a  profissão, desaguando  na  atual  carência  de  professores  em  todas as áreas. Por outro lado, como esperar dos atuais professores melhor desempenho e um diálogo qualificado com a comunidade escolar se não dispõem de tempo, nem de recursos, para sua qualificação e/ou aprofundamento de sua relação com o mundo da cultura?

Não considerar as variáveis acima destacadas é, em nosso juízo, reforçar a injustiça cometida contra aqueles que já vem, por décadas, sendo injustiçados. Em síntese, restringir a conquista da  qualidade  da  educação  ao  trabalho  das instituições  escolares,  é  não  reconhecer  que  o currículo  escolar  está condicionado  pelas  diferenças  psicoculturais  e  pelas desigualdades socioeconômicas.  

A  cabeça  do  colunista  atende  a  lógica  de transferir  unicamente  para o indivíduo  a  responsabilidade  por  sua trajetória social  e  profissional esquecendo,  mais  ou menos conscientemente, as implicações que o sistema social tem sobre as mesmas. Em suma, trata-se  de visão  obtusa,  muito própria  dos  que  exaltam  o  valor  da  educação   para o desenvolvimento  da nação,  à  semelhança  de  Gustavo,  mas  que  insistem em  ver  o sistema educacional como  imaculado de influências sociais. Pior de tudo é que tal perspectiva pode servir  para  legitimar  a  ‘violência’  dos  já indignos salários  ou,  até  mes mo,  os  atuais  atos  de violência  praticados contra  os educadores  da  nação.  Diante  desta  possibilidade,  o  colunista 
faria melhor se fosse dormir ao invés de escrever.

(1) Doutor  em  Sociologia/UFRGS;  Professor  do  Depto.  de  Sociologia/UFRGS; Colaborador  externo  do Grupo de Investigação de Pedagogia Social e Educação Ambiental da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Santiago de Compostela  –  Galicia/Espanha e da Ong Povoacão: Educação Cidadã.

Contato email: alexvirginio@uol.com.br 

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