O poder público responde aos "rolezinhos" com truculência. Mas, como em junho, a repressão só fará o movimento se propagar.
Em junho de 2013, a "terra brasilis" tremeu, sem que ninguém o tivesse
previsto. Mas, já havia algum tempo, o ranger das placas tectônicas da
"política nacional" apontava a emergência do magma jovem e indomável que
inundou as ruas e as fez viver.
Os megaeventos tinham feito das cidades um negócio para as elites de
sempre; o Minha Casa, Minha Vida foi usado para remover pobres para as
periferias; a "pacificação" apenas reconfigurou o regime de terror das
polícias contra os pobres.
Dezembro findou indicando que o ano iniciado no outono subverteu até o
calendário e não terminará com a chegada do verão. Os tremores não
cessaram: deixaram fraturas duradouras no solo das metrópoles e na
arquitetura da polis.
A predação das cidades e o falseamento da
representação foram estruturalmente postos em questão. As ruas
tornaram-se territórios irrenunciáveis de luta, "sherwoods" que escapam à
privatização de tudo.
O cenário para 2014 é, a um só tempo, maravilhoso e inquietante.
Renovadas formas de organização, debate, deliberação e ação emergem nas
ágoras improvisadas em escadarias e largos onde a multidão toma a
palavra com a coragem de dizer a verdade: do calvário de Amarildo até o
trem sempre enguiçado; da tragédia das enchentes até o apartheid dos
templos de consumo, agora desafiados pelos "rolezinhos". Os pobres ousam
saber e sabem ousar.
O poder responde tornando o apartheid explícito: proibição judicial e
truculência policial, e isso logo depois da hipócrita sacralização de
Mandela. Mas, como em junho, a repressão só fará o movimento se
propagar. Os jovens que circulam pelos shoppings nos dizem que, para
sermos livres, precisamos estar e agir juntos na polis. E estar juntos
implica que o pressuposto da liberdade seja a igualdade, a igualdade não
como aplicação de um critério abstrato de justiça, mas a justiça como
constituição da liberdade.
A escravidão de fato dos negros, das mulheres, dos índios e dos pobres
no Brasil persiste porque eles não são iguais e, pois, não são realmente
livres. Nas palavras de Hannah Arendt: "A isonomia não significa que
todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas
sim que todos têm o mesmo direito à atividade política".
Quantas ironias ouvimos sobre a horizontalidade exacerbada do movimento?
Oras, construir essa horizontalidade é condição necessária para dar
conteúdo à liberdade: relacionar-se entre iguais na publicidade da
ágora. Mais do que isso, pela primeira vez o movimento conseguiu mostrar
que o horizonte do aprofundamento democrático implica na conquista do
direito à política que os pobres das favelas, subúrbios e periferias não
têm.
Já nos gabinetes, intelectuais blasés "pontificam" na desqualificação
dos movimentos, deslembrados ou ignorantes de que pontificar é "fazer
pontes", não dinamitá-las; é reduzir distâncias, não produzi-las.
Atuam como Unidades de Polícia do Pensamento: criminalizam autores e
conceitos e, assim, ajudam a "pacificar" o debate, legitimando a
repressão. Pois essa foi a principal resposta dos poderes "públicos" à
nova brecha democrática: entregar a "mediação" do conflito à truculência
policial.
Não é fácil, porém, repetir "no asfalto" a rotina de terror
que o Estado (sob qualquer governo) impõe a favelas e periferias. No
Rio, sete meses de manifestações e enfrentamentos de rua mostram que,
quando é preciso, a polícia atenua sua histórica brutalidade.
Foram os "black blocs" que mantiveram a brecha democrática aberta contra
a hedionda reiteração da guerra do Estado contra os pobres. A multidão
continua nas ruas, redes e shoppings. Mas ainda há tempo para os poderes
constituídos, sobretudo o governo federal, reconhecerem a potência da
nova etapa democrática. Isso é o melhor que podemos desejar. Feliz ano
"novo"!
ADRIANO PILATTI, 52, é professor de direito constitucional da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro)
GIUSEPPE COCCO, 57, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular de teoria política da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: Artigo publicado no jornal Folha de SP.
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