domingo, novembro 17, 2013

A suprema justiça do espetáculo: o mensalão, o circo e nenhum pão

"Vamos aos fatos. Vivemos em um presidencialismo de coalizão, isto é, o presidente governa construindo uma sustentação no Congresso (Senado e Câmara de Deputados). A sistemática política funciona no sentido de impor a necessidade de formar bancadas de sustentação entre forças distintas que ocupam, supostamente de maneira proporcional, os postos no legislativo. O meio consagrado de manter estas bancadas, condição essencial à governabilidade, é a troca de favores entre o executivo e o legislativo que pode se dar na divisão de cargos no governo, na aprovação de emendas ao orçamento, no direcionamento das ações públicas para áreas de interesse dos lobbies que os parlamentares representam.

Até aqui, a consciência condescendente de nossa época e a legislação considera legitimo e legal. O ato do espetáculo exige não apenas que os atores que representam atuem como se aquilo fosse o real, mas há a exigência de outra atuação complementar, aquela que impõe ao público que suponha real a atuação dos atores (a menos que estivéssemos diante do distanciamento brechitiano, que não cabe aqui). Assim, os governantes atuam desta forma como se fosse pelo interesse geral e o bom público finge acreditar.

O que os governantes sabem e o bom público também, é que este campo restrito de legalidade é constantemente subvertido por iniciativas que vão além do legal e do legítimo e a troca de favores inclui práticas diretas ou indiretas de corrupção. Longe de ser um desvio ou mau funcionamento de um sistema em si virtuoso, a corrupção é parte integrante e incontornável da forma de governo estabelecida. Mas para o bom andamento do espetáculo, todos temos que fingir que não sabíamos e, público e governantes, se mostrar surpresos (normalmente como mau atores) quando as práticas ilícitas se tornam visíveis.

As campanhas eleitorais, que são o ritual espetaculoso pelo qual se montam as representações governamentais e parlamentares, são fundamentalmente um ato explícito de corrupção e chantagem. Não importa que fira os mais elementares princípios da própria jurídicialidade burguesa. Vejam a distribuição do tempo de televisão (meio que, hoje, se tornou decisivo). Pela lei, ele é distribuído pelo tamanho das bancadas existentes, o que é absurdo uma vez que define uma proporção fundada nas eleições anteriores para um pleito aberto ao futuro e quebra a igualdade como condição da disputa. Tal procedimento abre a negociação pelo tempo em um verdadeiro balcão de negócios onde o que menos vale são programas e compromissos políticos fundados em interesses reais em disputa na sociedade (leia-se “de classes”).

Não se proíbe a mercantilização da política, mas a consciência piedosa de nossa época parece se espantar na hora de pagar pela compra realizada, como o desavisado no bordel se mostrando surpreso por não ter sido por amor. Não é menos corrupção, no exato sentido da palavra, um governo que mantêm as taxas de juros em patamares exorbitantes para atender as promessas de campanha ao setor bancário, ou que dirige as obras públicas em favor das grandes empreiteiras. Ele está pagando favores advindos do financiamento de campanha. Da mesma maneira os recursos oriundos destes financiamentos, sejam registrados e legalizados ou contabilizados no famoso caixa dois, são partilhados entre aqueles partidos e políticos que disciplinadamente mantiveram-se na sustentação do governo.

O PT tem razão em se mostrar indignado. Ele apenas atuou pelas mesmas regras que sempre se atuou no presidencialismo de coalizão, da mesma forma que os governos do PSDB, DEM e PPS, assim como o histórico fisiologismo do PMDB, sempre governaram. Seu engano, entre tantos, foi supor que tinha sido aceito no clube e receberia as mesmas prerrogativas que seus pares mais tradicionais. Acreditou que pelo fato de não abrir a caixa preta do governo FHC e expor as entranhas dos atos ilícitos ali praticados, não diferentes daqueles pelos quais foi julgado, ele seria poupado, numa espécie de crença ingênua de “amor, com amor se paga”, tendo que cantar, ao final, um samba amargurado: “você pagou com traição, a quem sempre lhe deu a mão”.

Havia outro caminho? Esta é uma pergunta difícil. Para aqueles que acreditam que a estratégia política passa pelo suposto controle de governo tal com está definido nos marcos do Estado Burguês, ou seja, aboliram de sua concepção política a noção de ruptura, infelizmente, não. Mas não há inevitabilidade na política. O equívoco maior do PT e de sua estratégia é se prender aos limites da governabilidade burguesa e das amarras do presidencialismos de coalizão. Havia sim oura sustentação política, mas esta se localizava fora do parlamento e dos marcos da institucionalidade burguesa: os movimentos sociais e a organização autônoma da classe trabalhadora.

Essa opção levaria a um governo de tensões e intensificação da luta de classes, opção descartada pelos estrategistas petistas. A opção pela governabilidade com base na adesão (compra) de partidos implicou na aceitação tácita e explícita dos meios necessários para isso que agora são julgados como imorais e ilegais (e são).

Por isso, há uma ironia na última reunião do diretório nacional do PT que aventou a possibilidade de chamar as massas e a militância em defesa do PT contra o STF. Não se pensou em mobilizar as energias militantes e a capacidade de luta da classe trabalhadora quando podia e devia, para impor uma governabilidade que se dirigisse contra os limites da ordem, para sustentar uma reforma política que supera-se as armadilhas da governabilidade viciada estabelecida, para garantir uma reforma agrária, para barrar o desmonte das políticas públicas, para defender a previdência, para barrar os transgênicos e a supremacia do agronegócio. Agora querem que os trabalhadores saiam em defesa do governo contra uma decisão da justiça, da representação suprema de uma ordem política e jurídica a qual o PT se rendeu como limite intransponível. É mais que irônico, é ridículo.

Neste ponto o PT, mais uma vez, se mostrou coerente. Acatou a decisão da justiça e desautorizou as manifestações de massa.

Diz, mais uma vez Debord:

“A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (Debord, op. cit. 24)

Quem produziu espectadores não pode esperar agora que hajam como atores."


Trecho de texto de Mauro Iasi que é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ. 

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