segunda-feira, novembro 22, 2010

Para quem escrever?

Eu escrevo para os que mal podem ler. Escrevo para dizer que a escrita preserva a memória e ela é tudo o que temos. Matam o corpo, queimam-se os livros e fica a memória. As mães da Praça de Maio são consideradas loucas porque não esquecem. Afinal, como esquecer um filho?
Eu escrevo para os que têm saudade e para dizer que ninguém vai embora da nossa vida por completo. Sobra a lembrança de um sorriso, de um olhar cúmplice, de uma mesa de bar, de um ombro e de um abraço numa hora difícil. Sobra uma janela que nunca fecha. E dessas sobras, por fim, somos feitos...
Quando dizem que tudo passa, mentem. Ficam os pedaçoes , ficam as rugas, como um mapa, as cicatrizes, as marcas do tempo na matéria viva. Ficam os cabelos brancos, as noites mal dormidas, os olhos gastos e um mundo desfocado, além das pequenas e das grandes amarguras. Fica um choro contido, um quarto desarrumado, uma palavra não dita.
Não se varre a memória para baixo do tapete. Ela volta. Não se amarra a memória numa pedra e a joga ao mar. Ela bóia. As ondas do mar do tempo a trazem de volta. A memória, como a morte, nos espreita e, quando menos esperamos, ela emerge. Indômita e forte nos domina e lembra o que somos: um pouco disto, um pouco daquilo, uma coisa sem nome.
O que sobra é a verdade. Por essa razão, para os gregos, a palavra verdade (alethéia) estaria relacionada à impossibilidade do esquecimento. Mas o atento leitor não sabe que a verdade é a mentira que se esqueceu de acontecer, como dizia Mario Quintana?
A memória guarda muito da resistência. Resistência a uma sociedade de consumo que insiste em nos imputar necessidades imediatas, inúteis e céleres, bem como resitências em viver num eterno presente cuja memória incomoda os déspotas, os autoritários e os donos do poder.
A memória é um compromisso ético, como bem asseverava Theodor Adorno. O filósofo alemão exortava à impossibilidade, depois de Auschwitz, de se escrever um poema, uma vez que esse seria um ato de barbárie. De fato, a arte, infelizmente, não salvou o homem. Nem a filosofia ou o que precariamente chamamos de civilização.
Por tudo isso, eu escrevo para os que mal podem ler. Para os que agora, enquanto escrevo, estão mudos de fome, de raiva e de resignação. Eu escrevo para os meus companheiros humanos desesperados e para dizer-lhes que não desistam, pois um homem sem desejo é um sujeito morto, um corpo sem palavras, aniquilado pelo silêncio e pelo esquecimento.


Marcelo Rocha in " Não ouça tão depressa toda essa dissonância".

2 comentários:

Bel disse...

Nietzsche disse que amam-se os nossos desejos, e não os objetos dos nossos desejos!!!

te desejo impulsiona...

bjo bjo bjo

Bel disse...

ops....
ter desejo impulsiona...