quinta-feira, abril 02, 2009

Experiências alternativas

Gregório Durlo Grisa - mestrando em educação no PPGEDU - UFRGS.


Pensar nossas experiências educacionais, tanto como educadores quanto como educandos, tendo como referencial os princípios pedagógicos freireanos é um desafio significativo. Dizemos isso porque nossa realidade educativa institucional no estado do Rio Grande do Sul, a cada dia que passa, distancia-se de uma educação dialógica e popular, principalmente no que se refere à gestão do atual executivo estadual. Somente a utopia e a esperança são ingredientes sempre próximos, enquanto realidade possível, dos trabalhadores da educação comprometidos com a qualificação do ensino.

No entanto, quando vivenciamos momentos educativos em outros cenários, marcados por práticas progressistas e revolucionárias, nos entusiasmamos a desenvolver uma reflexão pautada pela pedagogia de Paulo Freire. Com isso não queremos dizer que a pedagogia freireana não serve para pensar a educação do nosso estado, pelo contrário, entendemos que o estudo de Freire deve ser uma prática constantemente revisitada.

Nos últimos meses fizemos duas visitas ao ITERRA - Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária, situado em Veranópolis-Rs, para trabalharmos na orientação dos projetos de trabalhos de conclusão de curso da turma de Licenciatura em Educação do Campo. Esse curso é promovido através de um convênio entre o ITERRA e a Universidade de Brasília.

Nessas visitas de trabalho vivenciamos momentos diversos com a turma e a equipe de educadores que lá estavam, esses momentos foram dentro de sala de aula, em reuniões, orientação em grupo e orientações individuais, além do convívio nos intervalos e no período das refeições. O Instituto é auto-gestionado, ou seja, são os educandos que se organizam e trabalham e estudam em tempos combinados entre os núcleos de base, compostos por educandos de todas as turmas que lá estão em atividade.

A qualidade organizativa desse espaço já marca uma diferença essencial com o ensino institucional que conhecemos, na educação dos movimentos sociais populares é levado seriamente em conta o princípio educativo do trabalho e todos os valores que o circundam. As práticas desenvolvidas no ITERRA se aproximam, bem mais que outras experiências, das características da teoria da ação dialógica que Paulo Freire destaca no segundo item do capítulo quatro da Pedagogia do Oprimido que são: a co-laboração, a união, a organização e a síntese cultural (Freire, 1970).

Por essa razão é que uma reflexão sobre tal espaço se torna algo mais palpável, isto é, onde percebemos que a realidade objetiva responde, de certa forma, aos propósitos estabelecidos anteriormente pela teoria e, consequentemente fica mais fecundo o exercício de análise. A pedagogia de Freire é uma das bases teóricas orientadoras fundamentais da educação dos movimentos sociais, ou da pedagogia do campo.

Através desse preâmbulo necessário, a fim de situar o leitor, e com a eleição de algumas categorias freireanas, vamos tecer alguns comentários entre o que vivemos naquele espaço educativo e a teoria.

Algumas categorias freireanas nas nossas experiências

Pensar que esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola ilusão. Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais.

Paulo Freire – Pedagogia da esperança.

Debater processos educativos dos movimentos sociais populares, principalmente do MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que é o representante majoritário na formação da turma com a qual trabalhamos, sem falar de esperança é deixar de lado uma dimensão que aflora nas relações de trabalho e estudo lá desenvolvidas. É claro que quando trazemos a categoria de esperança é no sentido explícito acima marcado pelo seu potencial revolucionário e não outro.

Muitos dos estudantes da turma de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) são professores das Escolas Itinerantes de seus acampamentos ou são professores da escola situada nos seus assentamentos. Suas preocupações pedagógicas, explicitadas em seus projetos, são diversas até por seus contextos diferentes, porém existem problemáticas comuns no que se refere ao constante desafio de dar continuidade a uma pedagogia emancipatória, baseada também em Freire, quando essa recebe resistência por parte de instituições, sujeitos e práticas tradicionais.

Alguns dos estudantes da turma de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) são professores das Escolas Itinerantes de seus acampamentos ou são professores da escola situada nos seus assentamentos e os demais, atuam nos coletivos de formação dos seus acampamentos e/ou assentamentos. Suas preocupações pedagógicas, explicitadas em seus projetos de pesquisa, são diversas, no entanto não divergem entre si, considerando os seus diferentes contextos, porém existem problemáticas comuns no que se refere ao constante desafio de dar continuidade a uma pedagogia emancipatória, baseada também em Freire, quando essa recebe resistência por parte de instituições, sujeitos e práticas tradicionais.

No caso do Rio Grande do Sul, em que se cortaram as verbas repassadas para as Escolas Itinerantes do MST, através do cancelamento do convênio existente entre o estado e uma entidade que representava o Movimento, existem desafios gigantescos para que as crianças acampadas prossigam com o processo de escolarização. Esses desafios foram trazidos pelas educadoras/educandas do curso LEdoC e ao mesmo tempo que a denuncia era feita, se percebia nelas essa esperança conceituada por Freire. Pelo envolvimento que existe nessas militantes cremos que, assim como nós, elas levam até as últimas consequências a ideia que Paulo Freire (1992, pg. 06) nos legou:

Uma das tarefas do educador e da educadora progressista, através da análise política, séria e correta, é desvelar as possibilidades, não importam os obstáculos, para a esperança, sem a qual pouco podemos fazer porque dificilmente lutamos e quando lutamos, enquanto desesperançosos e desesperados, a nossa é luta suicida, é um corpo a corpo puramente vingativo. O que há, porém, de castigo, de pena, de correção de punição na luta que fazemos movidos pela esperança, pelo fundamento ético-histórico de seu acerto, faz parte da natureza pedagógica do processo político de que a luta é expressão.

A partir dessa convicção e levando-se em conta as peculiaridades de cada acampamento, o Movimento pretende dar continuidade as aulas das Escolas Itinerantes. Embora não seja nossa pretensão priorizar aqui o fechamento dessas escolas por parte do governo estadual, orientado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, acreditamos que seja importante destacar que essa ação é a culminância de todo um processo de criminalização do MST, do desmantelamento das políticas públicas ligadas as Escolas Itinerantes e uma sistemática perseguição política para com os movimentos sociais em geral. Os educadores das Escolas Itinerantes ficaram nove meses sem receber os salários na atual gestão do estado, o repasse da merenda e materiais fundamentais para a manutenção das escolas foi atrasado quando não suspenso.

Com esse quadro de sucateamento por parte do estado, aconteceu o enfraquecimento das Escolas Itinerantes, mudou sua capacidade estrutural para atender a comunidade e, esta estrutura já não era a mesma de alguns anos atrás e com base nisso e em julgamentos extremamente discutíveis, o MP/RS exigiu o fechamento dessas escolas. As escolas custavam aos cofres do estado R$16 mil, um valor irrisório perto do montante que o governo teria de gastar só em transporte das crianças, se essas realmente se matriculassem em escolas regulares.

Essas informações foram colhidas com os educadores das escolas, participes dos acampamentos e pessoas diretamente envolvidas com as comunidades, o significado político e social dessa atitude do governo e a problematização dos argumentos apresentados pelo Ministério Público são questões que nos angustiam, no entanto, serão discutidas em outras oportunidades.

Assim como os educandos do ITERRA se dividem em tempos de trabalho e de estudo e essa organização é orientada por uma filosofia, as pessoas que coordenam os processos pedagógicos do curso e do Instituto em geral, também têm uma conduta pautada por princípios defendidos por Freire em sua metodologia pedagógica. Nossa convivência nesse espaço serviu, entre outras coisas, para presenciar a materialidade de tais princípios, quais sejam: o aprofundamento do diálogo como ferramenta de aperfeiçoamento, a rigorosidade no acompanhamento e orientação dos educandos e a construção de um ambiente de afetuosidade e amorosidade.

A afetividade, a amorosidade, a dialogicidade perpassam toda relação pedagógica, uma vez que sua razão de ser são seres humanos em processo de humanização. No entanto,“não há diálogo [...] se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que o funda [...] Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREIRE, 1987, p. 79/80).

Essa passagem sintetiza claramente o conteúdo dos princípios adotados pela Pedagogia da Terra e percebidos nas relações que constituem tal prática educativa. Com o desenvolvimento das atividades de orientação nos deparamos com a necessidade de estudarmos mais detidamente as características da educação do MST e da educação do campo como um todo. E com essa demanda nos deparamos com mais aspectos da pedagogia de Freire, as crianças Sem Terra têm uma educação vinculada estritamente com sua realidade, isto é, seu cotidiano, suas lutas, suas necessidades e seus brinquedos são sistematizados pelos educadores e transformados em conteúdo nas aulas.

Esse procedimento é defendido por Paulo Freire através de toda sua vida, outra questão que é interessante salientar é o fato de que a educação do movimento procura não só alfabetizar, mas também formar sujeitos com valores específicos de apego as lutas e as concepções do seu meio. Essa formação se caracteriza como um processo coletivo de experiências que se coadunam e constituem as personalidades individuais.

Essa noção de experiência que o MST trabalha nos remete a um conceito clássico da teoria marxista, elaborado pelo historiador inglês Edward Palmer Thompson, que entendemos que se aproxima muito do pensamento freireano.

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: experiência humana, (...) Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro desse termo – não como sujeitos autônomos, indivíduos livres, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos – e, em seguida, tratam essa experiência em sua consciência social e sua cultura das mais complexas maneiras e em seguida agem, por sua vez sobre sua situação determinada. (1981, p.182).

Esse valor dado a vida concreta dos sujeitos e às suas vivências, é diretamente proporcional ao êxito que comprovamos da metodologia adotada pelos movimentos sociais populares. No ITERRA apesar da coletividade ser prioritária, percebemos através das nossas conversar e de algumas condutas que o exercício da autonomia também existe. Nos momentos dedicados a construção dos projetos de pesquisa, os alunos ao fazerem suas escolhas teórico-metodológicas junto aos seus orientadores, concentravam suas energias na atividade de melhoria técnica do seu trabalho assim como de amadurecimento do conteúdo.

Os resultados desse processo foram muito positivos não só no que se refere à velocidade das melhorias dos trabalhos, como também em relação a compreensão que os educandos apresentavam sobre as questões que instigavam seus projetos de pesquisa. Isso denuncia não só a capacidade deles, mas principalmente a relevância de um real exercício de autonomia que perpassa a história de vida dessas pessoas dentro do Movimento. Freire(1996, p. Xxxx ) é categórico ao afirmar que:

O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão. O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que minimiza, que manda que "ele se ponha em seu lugar" ao mais tênue sinal de sua rebeldia legitima, tanto quanto o professor que se exige do cumprimento de seu dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência.

Essa longa, porém, necessária citação traduz o quão ontológico é para Paulo Freire o respeito à autonomia, podemos afirmar que os educadores que dizem seguir sua filosofia devem ser intransigentes no atendimento desse princípio em suas práticas pedagógicas.

A razão maior de pensarmos um pouco sobre essas atividades, especificamente, tem como objetivo mostrar que existem experiências sociais e pedagógicas diferentes e até antagônicas em relação às experiências institucionais “tradicionais” marcadas, muitas vezes, pelo conservadorismo. Por fim, somos partidários da idéia de Boaventura de Souza Santos (2001, p. 18) que em uma palestra intitulada “Seis razões para pensar”, publicada na revista de cultura e política Lua Nova nos diz que:

Enquanto a gente se deixar surpreender pela realidade, no sentido de que aquilo que nós observamos não está totalmente contido nas nossas teorias, ou nos nossos preconceitos, aí estará prevenido o perigo do sectarismo. Portanto, o importante é que saibamos que o compromisso com a objetividade existe para fundar a objetividade do compromisso, isto é, para termos razões pelas quais nós temos uma posição ou outra. O cientista social, sendo objetivo, tem que saber de que lado está e tem que saber com razões, razões pensadas, e é por isso que é preciso e é fundamental pensar. Não há objetividade sem objetivos.

Neste breve relato de uma experiência nos espaços educativos de um curso de formação de educadores do campo, caberiam muitos outros detalhes e outras reflexões, todavia não é nosso objetivo exaurir esse diálogo nesse momento, assim como não é nosso propósito absolutizar as práticas educativas dos movimentos sociais populares como o MST com a qual estamos tendo contato. Tais práticas contêm, como todas, contradições, dificuldades, inacabamentos e inúmeros desafios.

Referencias bibliográficas:

FREIRE, Paulo. A pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra. Rio de Janeiro, 1992.

FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. 17ª Ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. A pedagogia da autonomia: saberes necessário á prática educativa São Paulo. Paz e Terra, 1996.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

SANTOS, Boaventura de Souza. Seis razões para pensar. In. Revista Lua Nova nº 54. São Paulo, 2001.


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